A médica Rachel Esteves, no Níger, conta os desafios de sua primeira missão
Sempre quis trabalhar com serviço humanitário, mesmo antes de entrar na faculdade de medicina. No primeiro ano da faculdade procurando organizações médicas humanitárias, descobri Médicos Sem Fronteiras (MSF). No terceiro ano, fui a uma palestra sobre MSF na minha universidade e tive certeza que queria trabalhar com eles.
Quando terminei a faculdade, trabalhei dois anos e depois fui fazer minha especialização em Medicina de Família e Comunidade, assim que terminei a residência enviei meu currículo e fui chamada para o recrutamento. Após uma semana de espera angustiante, eles me telefonaram e disseram que eu tinha perfil para trabalhar com MSF. Chorei de felicidade e comecei a aguardar minha missão, que veio três semanas depois com uma proposta para trabalhar num projeto de desnutrição com crianças de 0 a 5 anos no Niger.
Para mim foi perfeito, sempre quis trabalhar na África e adoro pediatria, durante a residência trabalhei em vários hospitais dando plantão de pediatria.
A parte mais difícil de tudo foi deixar o Brasil, a despedida da família e dos amigos foi muito difícil. Os primeiros dias na África foram bem difíceis por causa da saudade, mas mesmo longe, foram eles que facilitaram a minha adaptação. Apesar da conexão ruim com a internet, conseguimos nos falar por e-mail.
O Niger é um dos países mais pobres do mundo. Tem o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo. A miséria é enorme. A maioria das pessoas fala Haussa ( a língua local), quem tem a oportunidade de ir à escola fala francês, como as pessoas que trabalham no hospital. O país é muçulmano, o que dificulta o controle de natalidade. A taxa é de sete crianças por mulher.
Estamos no meio do deserto do Sahara e aqui tem areia por todos os lados, sem uma gota d’água. Fruta aqui é luxo. A alimentação deles é basicamente milho e carne de cabra (para os que podem comprá-la), por isso a desnutrição é um grande problema aqui. Outro problema enorme á falta de higiene o que possibilita todas as doenças infecciosas.
Apesar de já ter tido uma boa experiência no Brasil, confesso que ao chegar aqui foi um grande desafio aprender a reconhecer a diferença entre uma criança desnutrida e desidratada, se a diarreia é infecciosa ou causada pela re-nutrição. Sem falar que a resposta delas aos antibióticos é completamente diferente da reposta de uma criança saudável.
Outro desafio foi a malária. O Níger é uma área endêmica de malária e ela é uma doença terrível, as crianças chegam em coma e super anêmicas no hospital.
O hospital possui quatro prédios. Um é a pediatria, onde ficam as crianças (com menos de cinco anos) com qualquer doença, mas que não são mal-nutridas. Outro que é a Unidade de Cuidados Intensivos, onde ficam as crianças graves, mal-nutridas ou não, e as crianças que deverão ser transfundidas (receber transfusão de sangue).
Os outros dois são chamados de Creni (sigla em francês para Centro Intensivo de Reabilitação Nutricional). Eles são divididos em fase 1 (onde ficam as crianças que estão iniciando a alimentação por sonda nasogástrica); transição (onde ficam as crianças que já começam a beber o leite mais calórico pela boca); e fase 2 (na qual as crianças recebem leite e Plumpy Nut, uma pasta de amendoim super proteica e super calórica.
Os mal-nutridos passam por todas as fases para receberem alta. E, geralmente, os mal-nutridos têm outras doenças associadas, diarreia, pneumonia, malária, anemia falciforme....nunca fica só na desnutrição.
No hospital somos duas médicas expatriadas (eu e uma pediatra alemã), cinco médicos nigerinos, três enfermeiros nacionais responsáveis pela pediatria, pelo Centro Intensivo de Reabilitação Nutricional (Creni) e Cuidados Intensivos e um enfermeiro expatriado responsável por todo o hospital. Cada serviço trabalha ainda com dois ou três enfermeiros, os assistentes nutricionais e os Health Promoters, responsáveis pela educação em saúde.
MSF é responsável pelo hospital e por cinco centros de saúde, chamados Crenas, onde as crianças desnutridas que recebem alta do hospital são acompanhadas. Lá as crianças passam por consultas e são encaminhadas para internação, quando necessário.
Nossa área total de abrangência é de 400 mil pessoas e tem Crenas que fica a duas horas de distância do hospital (na fronteira com a Nigéria). Se os carros do MSF não buscassem as crianças que precisam de internação todos os dias, elas jamais teriam acesso ao hospital.
As consultas no Crenas começam às 7 horas. Os carros saem logo cedo para buscar as crianças e, a partir das 10 horas da manhã, já começam a chegar cheios. O horário de pico é de 13 às 14 horas, mas às vezes chega um carro atrasado, às 17 horas, que partiu para buscar uma urgência mas é raro.
O médico responsável pelas admissões acompanha a evolução dos pacientes na fase dois, o que teoricamente, é mais simples, porque já é a porta de saída. Mas é horrível. Você está lá consultando as criancinhas e chega um carro cheio de admissões, somos obrigados a largar tudo, fazer as internações e depois voltamos para continuar as consultas.
[Rachel Esteves, médica, 7/11/2011, MSF ]
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